quinta-feira, 1 de outubro de 2020.
O arco de mil anos chamado Idade Média, que vai do século V ao XV, foi riquíssimo de experiências educativas, sobretudo através das escolas. Este período assume a herança clássica, a purifica e faz a síntese com a fé cristã. De início, a educação das novas gerações cristãs se deu através do catecumenato, que se desenvolveu em verdadeiras escolas de teologia. Já no século II é possível constatar a existência de escolas paroquiais ou presbiterais. No decorrer dos séculos surgem as escolas monacais, episcopais ou catedrais e palacianas. Dentre estas, destaque terá a escola monacal, que pode com toda propriedade ser chamada por antonomásia escola católica, por ser emblemática para todas as outras e para todos os tempos. Quem deseja conhecer a educação católica, deve estudar a história da educação, com particular atenção à educação nos mosteiros – dizemos educação, pois trata-se de um fenômeno bem mais amplo do que o que concebemos por escola em nossos dias. Tão logo o Divino Mestre ordenou aos apóstolos de irem por todo mundo ensinando as verdades necessárias para a salvação, iniciou-se a propagação da Igreja por toda a terra. Contemporaneamente, enquanto chegava aos confins do mundo, a Igreja teve de enfrentar provações internas e externas. Internamente, a Igreja enfrentava as heresias, combatendo os erros e ensinando a verdade. Externamente, desencadeavam as encarniçadas perseguições por parte do Império Romano, que se estenderiam por três séculos inteiros e que seriam sucedidas pelas invasões bárbaras. Concomitantemente, legiões de homens e mulheres, fugindo das turbulências do mundo e visando levar uma vida inteiramente dedicada a Deus, deixavam tudo que possuíam e se embrenhavam nos desertos, dedicados à oração, à penitência e ao trabalho. Os monges são sucessores dos mártires no que toca a oferta da vida, aqueles pelo sangue, estes pelo holocausto do dia a dia. Trata-se do que poderíamos chamar movimento monástico. Em princípio, os monges se reuniam em torno a um monge ancião, porém continuavam vivendo como eremitas. O pai deste estilo de vida, chamado anacoretismo, foi Santo Antão. Pouco mais tarde, a vida dos monges foi organizada em comum sob uma regra, e o pai do cenobitismo, nome dado a este fenômeno, foi São Pacômio. Muitos cenóbios ou mosteiros foram surgindo e se espalharam pelo mundo. No Oriente, o responsável por unificar o monaquismo sob uma regra foi São Basílio Magno. Já no Ocidente, será a regra escrita por São Bento que prevalecerá. Desde os Padres do Deserto, ou seja, desde os primórdios do monaquismo, o eixo da vida era o Ofício Divino que coincidia com o canto dos Salmos e a leitura e meditação das Sagradas Escrituras. As regras do monaquismo não legislam sobre pedagogia, nem mesmo trazem orientações diretas a respeito das escolas, mas se sabe que os mosteiros desde sempre foram lugar de ciência e erudição. E tudo partia do contato com as Escrituras Sagradas. Para isto, todo monge devia saber ler e escrever, bem como memorizar os textos sagrados. Além disso, deviam entoar os cantos no coro, o que para tal aprendiam o canto. Os monges assumiram o patrimônio dos antigos e com isso o seu modelo educacional. O Trivium e o Quadrivium tinham por objetivo a filosofia e a teologia. Essa ordem tinha por fim preparar e aperfeiçoar o monge para o serviço do Senhor. O primeiro passo, no entanto, era a leitura, a escrita e a memorização, e junto a esta primeira formação, a consolidação das virtudes. Por isso, o Quadrivium se dava conforme a necessidade, mas o canto era exercitado desde cedo. Dentre os trabalhos em um mosteiro o trabalho intelectual ou cultural, tinha lugar privilegiado. Os mosteiros não só produziram cultura, mas a preservaram das ameaças de desaparecimento. A leitura e a escrita tinham por fim preservar e propagar os livros. Havia um lugar exclusivo para tal trabalho, era o chamado scriptorium. As bibliotecas, por sua vez, armazenavam não só os livros produzidos no mosteiro, mas também aqueles que os abades se esforçavam por adquirir. O valor era tanto que há relatos de que quando obrigados a fugir por algum ataque dos bárbaros os monges levavam consigo apenas os livros. O esteio, porém, desta ordem da escola a serviço do Senhor, era a formação de homens virtuosos, isto é, homens santos. Por isso, os pueri oblati, meninos entregue pelos pais para serem educados pelos monges, eram entregue aos cuidados de um monge ancião, e cujos primeiros e mais substanciosos aprendizados eram as virtudes através da vida dos santos, nos quais ressaltava-se a figura do herói – que é o mártir, o confessor da fé, o homem virtuoso, o santo – a ser admirada e imitada. E não sem este ensino se procedia à gramática. Tão cedo também a escola monacal se dividiu em duas realidades, a interna e a externa, com fins exclusivos à formação dos futuros monges, mas também, fora do claustro, à educação dos seculares. Seis horas diárias eram dedicadas aos estudos, não havia férias escolares, guardavam-se os dias santos, que eram numerosos. Até aos 12 ou 13 anos os estudos se davam em torno dos gêneros literários: narrativas históricas, sermões, cantos e florilégios. A gramática, que ocupava a maior parte do tempo, estava alinhada ao ensino das virtudes. Dentre as funções pedagógicas que haviam na escola monacal, podemos destacar a do Magister Principalis e os professores auxiliares, a do responsável pelo ensino do canto que também era o bibliotecários e o custódio, responsável pela vigilância. No século XII o curriculum da escola monástica apresentava-se do seguinte modo: tinha as Escrituras e os Padres como próprios do ensino superior, para o qual preparavam as artes liberais. A filosofia designava a totalidade das ciências humanas e podia ser dividida em teórica (teologia, física e matemática), prática (moral, economia e política), lógica (gramática, dialética e retórica) e mecânica (indústria do lã, agricultura, medicina, caça, etc). Não é preciso muito esforço para se dar conta de que tudo isso gerou uma imensa produção intelectual, científica e escrita, verdadeiros tratados e coleções, não só de teologia, mas de ciências exatas, físicas e naturais, de medicina, arquitetura e engenharia, música, escolas técnicas e profissionais. Os monges foram educadores de todos, dos pobres e das elites, dos bárbaros e da Europa. O surgimento da escola episcopal, que encontra raízes em Santo Agostinho, assim ocorreu pela vida monástica que o santo levava e compartilhava com seus discípulos. Mais tarde, a escola palaciana surgirá da necessidade de uma educação de escol, pois as escolas monacais recebiam os meninos indiscriminadamente, carecendo-se assim de uma atenção específica às elites. Esta escola palaciana contará com monges na sua consolidação. E o que não dizer do Mosteiro de São Vitor cuja excelência contemplativa nos deixou princípios pedagógicos sublimes para todos os tempos. É possível discorrer muitíssimo ainda sobre a educação monacal, sobre os princípios pedagógicos da regra, a figura do mestre e do aluno, o conteúdo das disciplinas, as obras pedagógicas que surgirão no decorrer dos séculos, o método pedagógico monacal, a jornada no mosteiro e os frutos desta educação, cujos melhores e mais saborosos são os santos. São temas, entre outros, para próximos artigos. Basta-nos, aqui, guardar que aqueles que adentravam os desertos o faziam “desejosos de serem instruídos na ciência dos santos, desejosos de uma alta perfeição”. Isto porque a educação cristã sempre se alicerçou sobre esta premissa: “O princípio da nossa salvação e da nossa sabedoria, é, portanto, o temor do Senhor”. Em sua obra, A Opção Beneditina – Uma estratégia para cristãos no mundo-pós cristão, Rod Dreher, vê na educação monástica um referencial para o tempo atual. Diz: “O objetivo do monasticismo não era simplesmente retirar-se de um mundo corrupto para poder sobreviver, ainda que por vários momentos essa tenha sido uma das dimensões do problema. Mas no coração de tudo estava uma bisca pelo próprio Deus. Essa busca orientou a preservação do ensino clássico e da tradição pagã para os monges, pois eles amavam tudo que fosse verdadeiro e belo onde quer que estivesse”.

Referências

  1. D. Rops. História da Igreja. Vol. II. A Igreja dos Tempos Bárbaros. Quadrante: São Paulo, 2014. p. 221.
  2. Convém mencionar como eventos determinantes para esta definição a queda do Império Romano no ano de 476 dC e o chamado Renascimento que coincide com o retorno aos clássicos pagãos no século XV. Com a queda do Império Romano iniciou-se o soerguimento da Civilização Ocidental. Processo inverso deu-se com o Renascimento, retomada indiscriminada da cultura pagã, particularmente a grega. Na verdade, o Renascimento já era um sintoma do declínio que tem suas raízes mais profundas nas questões de alma e está tão intrinsecamente relacionado com o declínio da própria educação. A. D. P. Rosa, na obra O Código da Educação. Uma História verdadeira (Pie Pellicane: Florianópolis, 2022) ajuda muitíssimo na compreensão desta afirmação. Convém igualmente observar que o termo “Idade Média”, enquanto o que está entre dois polos, não é suficiente para definir todo o milênio plasmado pela cultura cristã e cujo instrumento eficacíssimo foi a educação.
  3. O catecumenato era o período de instrução que precedia os sacramentos da Iniciação Cristã, comportava instruções, rituais e mistagogias, e geralmente estendia-se por cerca de três anos. Nesse período que compreende cerca de três séculos, os Santos Padres têm a preocupação primária de instruir solidamente os novos cristãos tanto através de homilias, quanto de catequeses e escritos. Tem também a preocupação de formar aqueles que ensinarão aos catecúmenos. Damos destaque à obra de Santo Agostinho De Catechizandis Rudibus, isto é, A Instrução dos Catecúmenos.
  4. As escolas teológicas são desenvolvimento do catecumenato e vários são os fatores para o seu surgimento, dentre os quais podemos elencar: a própria consolidação do catecumenato, a diligência dos bispos em dar sólida formação às gerações cristãs, a conversão de filósofos pagãos à fé cristã, o desejo de aprofundar e explicitar os mistérios cristãos e a necessidade de defender-se dos ataques dos pagãos bem como combater as heresias que iam surgindo. As mais representativas destas escolas foram Alexandria e Antioquia, mas foram abertas em outros lugares, inclusive em Roma mais tardiamente. O eixo destas escolas era a Sagrada Escritura e tinham como propedêuticas à teologia as disciplinas pagãs como a gramática e mesmo a filosofia.
  5. Estas escolas poderiam ser comparadas àquelas de ensino primário. Os presbíteros são os colaboradores dos bispos, educadores por excelência. E assim como a diocese é regida pelo bispo, a paróquia é regida por um presbítero, que também tem o dever de ensinar. Desde muito cedo as famílias cristãs voltavam-se para os pastores quanto a educação dos filhos, com a queda do Império as escolas oficias sofrerão um colapso, mas já antes disso é preciso constatar dois fenômenos: a educação disposta pelo Império não é um fenômeno consolidado e generalizado, muito há ainda dos preceptores, o que era possível às famílias mais abastadas; junto a esse fenômeno está também a preocupação dos pais quanto ao ensino pagão aos seus filhos, o que os faz recorrer aos pastores, o que fará do ensino religioso a régua para o patrimônio educacional herdado dos gregos e dos romanos. As escolas paroquiais geralmente ensinarão as disciplinas iniciais: leitura, cálculo, escrita, canto dos Salmos, além, é claro, das principais verdades de fé e o modo de vida dos cristãos. Se tem notícia desse modelo de escola já no século II, com Protógenes de Edessa.
  6. Este processo abarca séculos e é complexo. Por exemplo, as escolas catedrais, isto é, anexas às respectivas igrejas e presididas pelo bispo, já podem ser vistas com Santo Agostinho uma vez eleito bispo de Hipona. Desta escola, inclusive, se tem notícias de saírem cerca de dez bispos, que uma vez nas suas dioceses, também terão a mesma iniciativa. A impostação dada por Santo Agostinho era, todavia, monacal. Mais tarde, as escolas episcopais ou catedrais, também terão por fim a formação dos clérigos, mas desenvolverão além do curriculum intermediário e superior, como a filosofia e a teologia, outras disciplinas como o direito eclesiástico e civil. Destas, mais propriamente, se desenvolverão as universidades. Já as escolas palacianas surgem como uma espécie de reação a dois fenômenos: um tipo de decadência das escolas e dos estudos, bem como a necessidade de formar especificamente as elites, pois os monges recebiam indiscriminadamente os seus estudantes, fossem ricos ou pobres. A preocupação de Carlos Magno e a sua reforma educacional partiu de ambas as constatações. Foi um monge, Alcuíno de York, o braço direito de Carlos Magno em sua reforma educativa.
  7. A este respeito, é emblemática a narrativa da vocação de Santo Antão escrita por Santo Atanásio (Vita Antonii. Cap. 2).
  8. Já nos seus alvores o movimento monástico é de uma grande riqueza e diversidade. Apesar de grandes nomes como os de Santo Antão e São Pacômio nos primórdios e São Basílio e São Bento na consolidação e propagação, é inumerável a lista desde os Padres do Deserto até os abades e abadessas, uma multidão de santos, que surgirão no decorrer dos séculos. Assim sendo, é importante, antes de tudo, dar o significado de expressões que fazem parte deste grande movimento que é o monasticismo. Monge, vem de monachos, monos, que significa único, só, isolado, solitário, isto é, aquele que se dedica inteiramente a oração e à meditação. Eremita, vem de eremos, que significa deserto, ou ermo; é equivalente a monge, porém em relação ao lugar e não à condição. Anacoreta, vem de anakhoretai, e significa afastar-se, ao ermo, ao deserto. Trata-se do monge que vivia onde havia outros monges, mas sem uma regra comum, podia acontecer que sob a direção de um monge mais experiente. Cenobita, de koinobium, que significa vida em comum; aldeia onde vive com outros monges sob um abade e sob uma regra comum, no cenóbio ou mosteiro. Abade quer dizer pai, expressão oriunda do hebraico, abbá. Era o superior da comunidade monástica, também este sob a regra comum, porém com as funções próprias da paternidade espiritual no que toca à provisão e à formação dos monges.
  9. O movimento monacal teve sua origem nos desertos do Egito, de lá propagou-se por todo Oriente, para a Palestina, Síria e Ásia Menor. No Ocidente a propagação tem inícios na Gália, depois Inglaterra e Itália, chegando por fim à Espanha.
  10. Esta expressão designa os pais do monaquismo, isto é, os primeiríssimos a se retirarem para os desertos, e que atraíram discípulos, antes de tudo pelo exemplo de vida, mas também pela retidão da doutrina. Além disso, tiveram a fama espalhada por causa do mesmo testemunho e ensinamento, mas também pelas obras e milagres que realizaram.
  11. É possível colher princípios pedagógicos na Regra de São Bento, como em todas as outras regras (de São Pacômio, de São Basílio, etc).
  12. “O mosteiro medieval sempre foi um fogo de cultura” (H.-I. Marrou. História da Educação na Antiguidade. Kirion: Campinas: 2017. p. 534).
  13. Seja o canto dos Salmos que a Lectio Divina exige um caráter letrado. Já a regra de São Pacômio previa que o monge soubesse recitar de memória pelo menos 20 Salmos e 2 Epístolas, para isso precedia-se o ensino desde a leitura até a escrita (Regra 139-140). São Patrício, monge missionário, anexa a celebração do batismo a entrega do alfabeto. São Cesário de Arles previa que as monjas também soubessem ler e escrever, fizessem duas horas de leitura por dia e copiassem manuscritos. São Bento prevê na sua regra a admissão e a educação das crianças, longo tempo à leitura e inclusive mobiliários escolares.
  14. “Aquilo que criou raízes profundas na memória dificilmente poderá ser eliminado” (Cassiodoro. Institutiones. p. 21). A educação medieval é alicerçada não na imaginação, mas na memória. A este respeito é interessante o estudo de Marry Carruthers. O Livro da Memória. Kirion: Campinas, 2022.
  15. “O trivium inclui aqueles aspectos das artes liberais pertinentes à mente, e o quadrivium, aqueles aspectos das artes liberais pertinentes à matéria. Lógica, gramática e retórica constituem o trivium; aritmética, música, geometria e astronomia constituem o quadrivium. A lógica é a arte de pensar; a gramática, a arte de inventar símbolos e combiná-los para expressar pensamento; e a retórica, a arte de comunicar pensamento de uma mente a outra, ou de adaptar a linguagem à circunstância. A aritmética, ou teoria do número, e a música, uma aplicação da teoria do número (a medição de quantidades discretas em movimento), são as artes da quantidade descontínua ou número. A geometria, ou teoria do espaço, e a astronomia, uma aplicação da teoria do espaço, são as artes da quantidade contínua ou extensão” (M. Joseph; O Trivium. É Realizações: São Paulo, 2008. p. 27).
  16. Os mosteiros eram focos de cultura pelas escolas e pelas bibliotecas e tudo que daí derivava. O ápice de tal foco era a liturgia, a verdadeira “escola da beleza”. E assim, os monges seja pelo ensino que pelo teor da vida que levavam, “ofereciam aos bárbaros uma nova cosmovisão e uma nova visão da história” (A. Saenz. p. 258).
  17. “É uma tarefa bendita e um zelo louvável pregar aos homens com a mão, comunicar com os dedos, fazer o dom mudo da salvação aos mortais e combater as seduções do diabo com a pluma e a tinta” (Cassiodoro. Institutiones. Apud. J. Le Goff. Homens e Mulheres da Idade Média. p. 47).
  18. A este respeito convém conhecer o Vivarium de Cassiano, cuja experiência tornou-se fundamental quanto ao reconhecimento do trabalho intelectual.
  19. As bibliotecas eram “os tesouros mais caros aos religiosos” (R. A. Bello. p. 27).
  20. O calendário escolar era o calendário eclesiástico, tratava-se de uma só coisa.
  21. R. de Ayres Bello. Pequena História da Educação. Liceu: Sertanópolis, 2020. p. 147.
  22. C. S. Jaeger. A Inveja dos Anjos. Kirion: Campinas, 2019. p. 281-307. Hugo de São Vítor. Princípios Fundamentais de Pedagogia. Centro Cultural Hugo de São Vítor: Foz do Iguaçú, 2019.
  23. São João Cassiano. Collationes 20, 2.
  24. Pr 9,10. Cf. Ef 6,4; Cl 3,21.
  25. Ecclesiae: Campinas, 2021. p. 176.
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